quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

A muito tempo que não me emocionava tanto


O filme "Piaf um hino ao amor" é sentimentos fortes do começo ao fim. A cinebiografia de Edith Piaf é interpretada brilhantemente por Marion Cotillard, atriz que se entrega de corpo e alma, emocionando em cenas marcantes que ficam em nossa memória. Quando a cantora sai da vida pessoal e entra no palco em um ato de entrega à arte, para cantar "Hymne à l'amour", extravasando toda a dor de perder seu amado, é dificil conter as lágrimas. Já no final da vida, Piaf morreu aos 47 anos mas aparentando muito mais, ela clama pelo seu público e mesmo impossibilitada sobe ao palco. Quando sai do cinema, ainda não tinha me recuperado de tamanha emoção, a muito tempo que um filme não mexia tanto comigo. Sai da sala com outra visão do mundo, olhando as pessoas com vontade de dizer a elas o quanto o amor é importante em nossas vidas, que viver sem amor é o mesmo que padecer na terra. A entrega a arte, a música transformando a vida das pessoas e nos mostrando atravéz do cinema a grandeza do amor. Não tenho palavras para descrever a beleza que é cada instante desse filme que me emocionou em todas as cenas. Quando a pequena Edith canta a Marselhesa na rua para ganhar moedas para sobreviver, comecei a chorar e não parei mais, terminando num choro convulsivo no grandioso final ao som de "Je ne regrette rien". Posso estar exagerando pois acabo de ver o filme e escrevo meio arrebatado, mas mesmo que exista alguns deslizes, exageros e pieguismos no roteiro, "Piaf um hino ao amor", é um dos melhores filmes que assisti nos ultimos tempos.
A letra de "Je ne regrette rien", traduz um pouco do que é a personalidade da Edith Piaf mostrada no filme:
Não, de Jeito Nenhum.
Não, de jeito nenhum. Não, eu não me arrependo de nada. Nem o bem que me fizeram. Nem o mal, tudo me parece igual. Não, de jeito nenhum. Não, eu não me arrependo de nada. Está pago, varrido, esquecido. Eu estou farta do passado. Com minhas lembranças, eu alimentei o fogo. Minhas aflições, meus prazeres. Eu não preciso mais deles. Varri meus amores. Junto a seus aborrecimentos. Varri por todo dia. Eu volto ao zero. Não, de jeito nenhum. Não, eu não me arrependo de nada. Nem o bem que me fizeram, nem o mal, tudo me parece igual. Não, de jeito nenhum. Não, eu não me arrependo de nada. Minha vida, minhas jóias, hoje. Começa com você.

quarta-feira, 17 de outubro de 2007


Em meu ultimo post, pra falar de marginalidade, usei como pretexto as discussões patéticas em mesas de boteco; geralmente filosofias de botequim costumam chegar a lugar nenhum.
Mas nem sempre é assim, em mesas de bar surgiram lindas canções e movimentos que marcaram a história da cultura brasileira.
Composições inesquecíveis de grandes nomes do samba como Nelson Cavaquinho, Assis Valente, Ismael Silva, Geraldo Pereira, surgiram no calor das rodas de samba nos bares da Lapa dos anos 40 e 50.
Nos anos 60, depois de um tempo de ostracismo, Cartola foi redescoberto, o jornalista Stanislaw Ponte Preta encontrou o compositor lavando carros em um estacionamento no centro do Rio. Ele e Dona Zica abriram um bar que entraria para a historia, o Zicartola era freqüentado por todo tipo de gente: sambistas, estudantes, malandros e intelectuais. Foi o iniciador de muitos artistas e idéias, ali Clementina de Jesus cantaria pela primeira vez para uma platéia, assim como Paulinho da Violai. O emblemático show “Rosas de Ouro”, faria grande sucesso com as belas canções que ali surgiram.
Outra turma, na Zona Sul, revolucionaria o cinema brasileiro. Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha, Cacá Diegues, Luiz Carlos Barreto, se reuniam em bares de Botafogo. O movimento do Cinema Novo foi fruto de discussões acaloradas em mesas de bar, tendo como líder e aglutinador o gênio criativo de Glauber Rocha, jovens cineastas dispostos a experimentar e ousar, desmascararam nossa crueldade com câmeras vertiginosas na mão e várias idéias na cabeça.
Nos final dos anos 60, Nelson Rodrigues era freqüentador assíduo do Bar Antonio’os no Leblon, com seu sarcasmo peculiar, Nelson criticava em suas crônicas as idéias esquerdistas de pseudointelectuais, que entre um wysk e outro, faziam filosofias vazias a venerar Marx e Sartre.
Aliás o Nelson me inspirou para escrever este post, acabo de ler uma série de crônicas fantásticas no livro “O óbvio ululante”, verdadeira pérola jornalística. Na coluna “Confissões”, publicada de 1967 a 68, o dramaturgo traça o panorama de uma época de forma debochada com humor negro profético e delicioso. Vale a pena conferir, aliás acaba de chegar às livrarias uma nova edição, com uma bela diagramação, bem legal.

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

INTEGRAR-SE OU DESINTEGRAR?


Em conversas de bar sempre surgem discussões, filosóficas, existencialistas.... Cachaça, cerveja, conhaque e cia. são um bom combustível para divagações. Em mesas de boteco, sempre ficamos ridículos falando de assuntos que tratamos com extrema seriedade. Atualmente em uma dessas conversas, percebi que já estava discursando inflamado sobre a marginalidade, na arte, na vida. Em minha opinião a visão de mundo de quem está na margem é muito melhor de quem está no centro. Nesse mundo cheio de padrões e preconceitos, ter uma visão de fora é sempre melhor. A primeira vez que li algo a respeito, foi em crônica de João Silvério Trevisan, escritor que através de sua coluna na extinta revista gay, "Sui Generis", contribui muito em minha descoberta.
Esse texto foi incluído como capítulo em "Devassos no Paraíso", em minha opinião um dos livros mais importantes que tratam da homossexualidade no Brasil. É como se com suas palavras, ele desse um tapa na cara de todos esses burocratas da sexualidade, que existem por ai.
Para ilustrar, Madame Satã, malandro, artista, presidiário, pai adotivo, negro, pobre e charmoso representante da marginalidade.



INTEGRAR-SE OU DESINTEGRAR?de João Silvério Trevisan.
Integrar-se ou desintegrar, eis a questão. Percorro o meio homossexual e não canso de me deparar com situações surpreendentes. Não, não vou falar de pegação (ou açougue) nos cinemas, parques e saunas -- não desta vez. Num debate promovido pelo CAEHUSP, dentro do seu ciclo de mesas redondas sobre homossexualidades, ouvi uma conversa que foi entusiasmando o público na mesma proporção em que ia me deixando de cabelos em pé. Como havia uma vereadora presente, alguém propôs com eloquência que ela encaminhasse junto à Câmara dos Vereadores de São Paulo os projetos de: 1) determinar uma praça para as bichas caçarem à vontade (sugeriu-se a Praça Roosevelt, pela proximidade de vários outros points gueis); 2) batizar ruas e criar monumentos com nomes de bichas e lésbicas eméritas. "Meu Deus, se mencionarem o meu nome, onde vou me esconder?" -- pensei, aterrorizado ante a possibilidade de estar entre as bichas eméritas.
Não iria me esconder por timidez. É que eu execro monumentos de qualquer tipo, a qualquer pessoa. Na década de 70, quando morava no México, fiz meu único poema em espanhol, em homenagem a García Lorca, amaldiçoando as pedras dos monumentos feitos sobre nossos cadáveres, depois que nos atiraram pedras a vida toda. Mais recentemente, quase criei sérios problemas político-familiares quando o prefeito de minha cidade natal quis criar um centro cultural com o meu nome. Considerando que era período eleitoral, o centro seria inaugurado sem qualquer infra-estrutura, para ser fechado em seguida, e eu me sentiria manipulado. Mas, sobretudo, pesava a incongruência da minha situação: prestes a ser despejado do meu apartamento, sem dinheiro e solitário num país de merda -- mas com meu nome na fachada de um centro cultural!... Ou seja, tem algo de podre no reino da Dinamarca.
Querem nos prestar homenagem? Pois que seja em vida, aqui e agora, sem motivo especial: a maior homenagem é nos deixar viver do jeito que somos, queremos e merecemos pelo que fizemos. Ou seja, reconhecimento real e não hipocrisia para descarregar consciências pesadas. Por isso, no tal debate, a convicção com que se reivindicava a consagração do gueto me pareceu uma burrice suprema. Ao contrário do que se pensava, não havia nisso libertação, mas confinamento: pode-se trepar, contanto que seja ali. Ora, faça um exercício de imaginação para pensar no que não nos estaria sendo pedido em troca, pois nada nos é dado de graça -- sejamos nós pobres ou pretos ou homossexuais ou, de algum modo, parte daquele grupo de cidadãos de segunda catergoria, tratados como a escória neste país de banqueiros e ruralistas. Ou não é ser escória ouvir piadinhas, amar clandestinamente, ter que esconder metade da sua vida, etc, etc. etc.?
(Sei que cada um de vocês pode fazer, por experiência própria, sua lista da repressão quotidiana que nos impingem.) Pra mim, um fato é certo: não preciso que determinem um lugar onde eu possa caçar, simplesmente porque quero caçar em qualquer lugar da cidade. E quanto aos monumentos, recuso ser cooptado depois de morto. Vivo incomodando e tenho pago (alto) preço por isso: apesar de extremamente intensa e criativa, graças ao meu esforço, minha vida é cheia de dificuldades e humilhações (recentemente um jornal devolveu um artigo que eu, com 52 anos, escrevera a seu pedido; e me pagou -- para não publicar; tema: homossexualidade). Portanto, prefiro que a sociedade -- que me puniu por ser bicha, pensar com a própria cabeça e escrever criativamente -- continue me tendo atravessado em sua garganta, mesmo quando eu já for cadáver. Por que não pensar maior, para além do gueto? Criar, tirar do nada, inventar, não é o que fazemos a vida inteira?
A partir de espaços rarefeitos e emoções recônditas, criamos e inventamos o nosso mundo incessantemente, para poder sobreviver no exílio em que nos meteram. Ou será que a discriminação que sofremos é apenas um faz-de-conta de gente mimada (que só pensa em trepar, como se diz por aí, a nosso respeito)? Será que não é prova de burrice sonhar em integrar-se na mesma sociedade injusta que nos oprime? Será que tudo o que queremos é partilhar da mesma mediocridade que nos empurra para as margens? Ah, a margem! Eis o ponto. Por menos que seja, o nosso grande trunfo é o olhar das margens que fomos obrigados a desenvolver. É esse olhar que nos fornece instrumentos para exercer a crítica à cultura e é graças a ele que podemos sonhar com (talvez propor) um mundo diferente. Nossa "doença" é o melhor que temos. Caso contrário, seria preferível casar, ter filhos e virar "saudáveis" executivos -- como fazem muitos "homens de bem", ainda que continuem freqüentando saunas de viado, às escondidas.
Integração? Não, obrigado. A sociedade tem que aprender não com nossa saúde forjada, mas com nossa "doença" -- aquilo que ela considera doença, porque a assusta e coloca em crise. Afinal, somos "doentes" quando ousamos transgredir, arriscando muito, quase tudo. E transgredir em nome de valores que estão muito acima da mediocridade medida pelo preço do mercado. Não é graças a esses valores que conseguimos sobreviver afetivamente no deserto, cavando com as próprias mãos o nosso amor e a nossa fé, todos os dias? Pois é com isso também -- nossa "doença"-- que construímos nossa singularidade individual. Portanto, chega de palavras-de-ordem, seja na publicidade que nos manda comprar para ser belos (consumir para ser mais consumível), seja nos discursos revolucionários de algibeira, ansiosos por substituir os ocupantes atuais do trono. Melhor, isso sim, tomar posse da nossa homossexualidade como um trampolim para a desintegração.
Desintegrar, por exemplo, equívocos como aquele do masculino baseado no culto fálico e na sua própria falta de saída. (Esse é um outro papo, a crise do masculino -- da qual as bichas somos ponta de lança, quando exacerbamos as contradições masculinas.) Se temos uma função social própria, essa é desintegrar. Somos mestres em desintegrar, já que vivemos da desintegração. Nós construímos não contra ela mas graças a ela. Aprendemos a viver em meio aos fragmentos que nos deixaram sobrar. Os negros brasileiros sabem do que estou falando: pensem na feijoada, hoje prato nacional, criada pelos escravos com os restos de comida que recebiam. No caso homossexual, a singularidade está na repressão que sofremos desde pequenos. Pode parecer pouca porcaria. Mas não é. A sociedade, tal como constituída, dificilmente poderá nos aceitar em seu seio -- a menos que ela mude, coisa comprovadamente difícil; ou que mudemos nós -- tal como já fizeram milhares de pessoas no decorrer da História.
Essas são as duas alternativas possíveis. E digo por que a sociedade não pode nos engolir. Por mais que proliferem os bares, as danceterias, as saunas, os desfiles de moda, as peças/filmes/exposições e até mesmo os espaços na mídia, estaremos sempre sob vigilância estrita -- porque somos basicamente condenáveis. Socialmente, vivemos num ilusório bolsão de tolerância. Ou será que, na reforma constitucional brasileira você viu a esquerda votando a favor da opção sexual como um direito do cidadão? Será que já ouviu D. Evaristo Arns, o cardeal que adora ficar do lado dos oprimidos, reconhecer a opressão aos homossexuais? Será que você conhece algum organismo internacional ligado à ONU que defenda os direitos homossexuais no mesmo grau de legitimidade com que brande os direitos dos negros, das crianças, das mulheres, dos índios, etc.? Não. E duvido que vá conhecer tão breve.
Pelo mesmo motivo que até hoje não permitiu indenização aos homossexuais vítimas do nazismo, como aconteceu com outros grupos, fossem eles judeus, políticos e até mesmo ciganos. Ou pelo motivo que leva os delegados brasileiros a engavetar sistematicamente os casos de assassinatos de homossexuais. Será que você nunca notou o constrangimento mal disfarçado das campanhas contra a Aids, no tempo em que isso era basicamente doença de viado (que dá o cu, como o Paulo Francis fazia questão de frisar)? O motivo é simples. Para a atual sociedade moderninha, mesmo quando não afirma em voz alta, nós ainda significamos um bocado de coisas abomináveis. Eu poderia citar uma penca delas. Mas vamos nos concentrar apenas no denominador-comum que perpassa todas as condenações, discriminações ou omissões conhecidas: o prazer. Nós horrorizamos o mundo porque nossa grande reivindicação repousa sobre a liberdade de amar, um amor não procriativo, que visa apenas o prazer.
Você poderá dizer que hoje isso não é privilégio nosso, já que a sociedade moderna assenta-se sobre o hedonismo e o consumo. Engano, pois o nosso prazer passa por outro viés: o do estigma historicamente consagrado-- como já analisei na SG nº 23. Nosso prazer é ultrajante. Está lá na Bíblia, mas também em leis americanas ou inglesas ou chinesas e na orientação seguida por muitos catedráticos de psicologia, até hoje. Além do mais, o prazer veiculado em nossas sociedades é sempre uma escapatória para a culpa. Culturas que têm como figura icônica um Deus sofrendo na cruz costumam ter problemas com o prazer puro e simples -- principalmente o sexual, sem pretensão reprodutiva. Por isso, fazemos emergir o lado sombra dessas sociedades baseadas na necessidade do sofrimento. Despertamos seus demônios adormecidos. Elas adoram nos crucificar porque ousamos nos contrapor à crucifixão (e, às vezes, pervertemos a própria dor, ao substituir Cristo por São Sebastião -- aquele todo flechado, que suspira de amor).
Em resumo, para ela nós não temos conserto. E isso nos outorga uma grande vantagem: somos fascinantes objetos do desejo recalcado da sociedade. Enquanto formos proibidos, estaremos também encantando. Ou alguém duvida que quanto mais proibido mais desejado? É a lei da culpa. Há muito tempo a humanidade vem exorcizando através do horror ao nosso "desvio" seu próprio desejo de transgredir. Somos o espelho de sua transgressão, por nós atualizada. Quando a sociedade vai nos integrar? No dia em que formos suficientemente integráveis. E, repito: pagando um preço. Pense em quanto vai ser preciso dar em troca. Exercite sua imaginação: faça uma lista. No final, você verá que o Paraíso Social tem cara de papai-mamãe -- que poderá ser papai-papai ou mamãe-mamãe. Mas sempre se exigirá que a gente se coloque no nosso lugar, quer dizer, o lugar à margem que a sociedade nos ofereceu, sobretudo quando delimita nosso espaço. Porque lá é o lugar dos transgressores que somos, gostemos ou não.
Portanto, será preferível continuar criando Vida nessas inóspitas margens. Foi o que muita gente extraordinária fez. Foi o que Safo fez. Sócrates fez. Michelângelo. Tchaikovsky. Virginia Wolf. Pasolini. Marguerite Yourcenar. Mário de Andrade. É outra lista longa. Informe-se e faça a sua própria. Vai ser delicioso saber que você nunca esteve só -- parte do seu verdadeiro mundo, não daquele onde nos querem enfiar. E haja listas!


(Publicado na revista SUI GENERIS; julho/1997, nº 25; e como apêndice do livro DEVASSOS NO PARAÍSO, Ed. Record, 2.000)

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Passolini gênio único do cinema


Passolini é um gênio único na história do cinema, sua forma de pensar e fazer cinema é singular, seus filmes também. Mexendo em meus arquivos encontrei um texto extraido do documentário "Passolini, Nosso Proximo" dirigido por Giuseppe Bertolucci, que foi exibido no Festival de Veneza do ano passado. É uma pena, mas é dificil que filmes como esses cheguem por aqui. A clareza com que o diretor italiano fala da linguagem cinematografica e do papel do cinema na sua vida, é muito interessante.


Renúncia à língua, cinema de resistencia
Não escrevo mais como antes, o que equivale a dizer que não escrevo mais. A principio, quando comecei a fazer cinema, pensei que fosse apenas a adoção de uma técnica diferente, quase uma técnica literária diversa. Mas depois, pouco a pouco precebi que se trata da adoção de uma língua diferente.
Então abandonei a língua italiana, com a qual me expressava como escritor e adotei a língua cinematográfica. Disse varias vezes, por puro protesto, contestação total, que eu gostaria de renunciar a nacionalidade italiana. Ao fazer cinema, renunciei a língua italiana, isto é, a minha nacionalidade.
Mas a verdade é outra, talvez mais complicada e profunda: a língua exprime a realidade por meio de um sistema de signos. Já o cineasta exprime a realidade por meio da realidade. Essa talvez seja a razão de gostar do cinema, de preferi-lo, pois ao exprimir a realidade como realidade, opera e vivo continuamente no nível da realidade.
Não nos importamos nem um pouco com a poesia. Usamos a palavra “flor” porque ela nos serve em nossas relações humanas. As imagens, ao contrário, fundam-se nas imagens dos sonhos e da memória.
Quando sonhamos e recordamos, rodamos dentro de nós pequenos filmes. Isso quer dizer que o cinema tem seus fundamentos e suas raízes numa linguagem completamente irracional, irracionalista. No fundo, quando alguém vê um filme, tem a impressão de ter sonhado.
Se eu acreditasse que meu cinema fosse completamente integrado por uma sociedade que quer inclusive o tipo de filme que faço, então talvez eu não o fizesse.
A sociedade burguesa digere tudo: amalgama, assimila e digere tudo. Porém, em cada obra em que a individualidade e a singularidade se afirmam com originalidade e violência, há algo de inintegrável.
Tenha essa confiança na liberdade humana, que não saberia expor em termos racionais. Mas percebo que, se as coisas continuarem assim, o homem se mecanizará e alienará a tal ponto, que essa liberdade se perderá inteiramente. Eu continuaria a fazer cinema do mesmo modo, ainda que a liberdade estivesse apenas comigo e se exaurisse com a expressão.
Continuaria a fazê-lo do mesmo modo porque preciso fazê-lo. Ou me suicido ou sigo fazendo.
Penso que em nenhuma sociedade o artista é livre. Sendo esmagado pela normalidade e pela média de qualquer sociedade onde viva, o artista é uma contestação vigente. Representa sempre o outro daquela idéia que todo homem, em toda sociedade, tem de si mesmo.
Em minha opinião, uma margem mínima de liberdade, ainda que nem seja mensurável, sempre existe. Não sei dizer até que ponto isso é ou não liberdade. Mas com certeza há algo que escapa a lógica matemática da cultura de massa.

domingo, 2 de setembro de 2007

Cláudio Assis e a estética cinemanovista



Fui assistir “O Baixio das bestas”, filme do diretor de “Amarelo Manga”, Cláudio Assis. As cenas do filme assustam e chocam já no inicio, a pipoca que comprei ficou entalada na garganta. O diretor mostra a degradação do ser humano, apelando para imagens fortes de sexo, estupro e violência, cenas que incomodam. Uma jovem de 16 anos explorada e mantida dentro de casa pelo avô, em um pequeno povoado na Zona da Mata pernambucana. Durante algumas noites, o avô leva a garota ao posto de gasolina para expô-la nua a troco de alguns reais. Na cidade, Everardo e Cícero, promovem orgias violentas na casa de Dona Margarida, onde moram algumas prostitutas. O espectador é provocado o tempo todo, com sexos a mostra, estupro e pedofilia. Em umas das cenas o personagem de Matheus Nachtergaele olha direto para a câmera, e diz que “o bom do cinema é que dentro dele pode se fazer o quiser”. O elenco todo está maravilhoso em interpretações que reforçam a dor e a hostilidade daquele ambiente. Dira Paes linda como nunca, o fantástico Fernando Teixeira como o avô insano que maltrata sua neta, Marcélia Cartaxo e Hermila Guedes, mostram em seus olhos a desgraça de mulheres abusadas constantemente. Aliás, a dura condição da mulher é um alerta do filme. Belas cenas em que a câmera passeia no meio do maracatu rural.
A intenção é ser visceral, chocar, com esse recurso o diretor nos leva para uma realidade distante, mas que é inerente a todos.
Sempre me disseram que Cláudio Assis seria herdeiro da estética cinemanovista, mas depois desse filme tive a certeza que não. Suas pretensoes sao outras. O Cinema Novo nunca explorou em seus filmes explicitamente, o sexo. Glauber Rocha atacou vorazmente os filmes “Je vous salue Marie” de Godard e “O ultimo tango em Paris” de Bertolucci, por causa de suas cenas de sexo. Para Glauber, quando sexo e violência são mostrados de forma descritiva, ela agrada o publico estimulando seus instintos sadomasoquistas, mas aliena quando isso é transformado em espetáculo, a violencia se insere subjetivamente na mente da pessoas.

terça-feira, 28 de agosto de 2007

As mulatas de Di não são mais as mesmas




Ele foi o pintor da mulatice brasileira, dos cabarés, e dos casebres iluminados das favelas, existindo vida lá dentro. Seu funeral foi transformado em carnaval tropicalista por Glauber Rocha que fazia uma bela homenagem ao ultimo modernista. Estou falando de Di Cavalcanti e do curta produzido por Glauber Rocha “Di Glauber”, com a epígrafe “Ninguém assistirá ao formidável enterro de sua ultima quimera, somente a ingratidão aquela pantera foi sua companheira inseparável” da poesia de Augusto dos Anjos. Quando estive na exposição “Di Cavalcanti um perfeito carioca”, que reunia as melhores e mais emblemáticas obras do pintor, saí de lá olhando o Rio de Janeiro de outra forma, eu mineiro estando a passeio na cidade maravilhosa, de repente me sentia dentro de um quadro modernista. No charme decadente da Lapa, parei pra pensar. Será que as mulatas românticas que Di pintava, seriam as mesmas hoje? Deparei-me com lindas mulheres faveladas, se insinuando e sonhando com louros ricos dos USA. Já não estamos mais naquela época em que o morro era romântico com samba e lata dágua na cabeça. “ Eu sou samba, a voz do morro sou eu mesmo sim senhor, quero mostrar ao mundo que tenho valor” de Zé Kéti embala Rio 40 graus de Nelson Pereira dos Santos, Cidade de Deus dos anos 50, primeira vez que o cinema mostrava a realidade do morro, com mulatas inocentes cantando samba na beira do tanque, com o mar lá longe. Naquela época era possível uma solução do problema das favelas, mas o espírito desenvolvimentista esqueceu dos favelados. Hoje perdemos o romantismo para o tiroteio, o funk que banaliza o sexo, e cultua o crime organizado, dá lugar ao samba no imaginário da mulata. A verborragia de Glauber conclama o grande pintor que pintava com o sangue de sua tinta, o ódio, o amor, a dor no seu mágico abstracionismo, as mulheres de cor em sua desgraça distinta. Um trecho do filme exibe em tom épico o caixão com o pintor em ar sorridente, o morto deveria estar adorando a presença de seu amigo, parceiro na luta pela cultura brasileira. Ao som da marchinha “Teu cabelo na nega”, vemos que esta não é uma homenagem qualquer, e sim um belo exercício estético à altura do gênio do Cinema Novo. A exibição do filme é proibida judicialmente pela família de Di até hoje, uma pena pois “Di Glauber" é uma linda homenagem ao poetapintor, com Glauber Rocha no auge de sua maturidade artística.

sábado, 25 de agosto de 2007

"O sertanejo é antes de tudo um forte"



“O sertanejo é antes de tudo um forte” foi essa frase de Euclides da Cunha que ficou na minha cabeça hoje, vidas desgraçadas pelo latifúndio, o sofrimento de um povo que luta contra a tirania de grandes proprietários de terra, a desigualdade, a fome, a seca. Acabo de assistir na TV Cultura ao belo documentário de Eduardo Coutinho, “Cabra marcado para morrer”, filme que começou a ser produzido em 1962 e que só seria finalizado devido a repressão da ditadura, na década de 80.
Temas relacionados as lutas por terra, ainda são recorrentes nos telejornais, que mostram os trabalhadores rurais organizados como bandidos arruaceiros. O assassinato de um trabalhador rural que liderava uma Liga Camponesa no interior do Nordeste é o tema do filme. O que fica na minha mente quando sobem os créditos, é que a realidade brasileira no meio rural continua a mesma de 1962 pra cá. Ainda existe escravidão no latifúndio, a terra ainda não foi bem dividida. Narrado por Ferreira Gullar, no inicio do filme se ouve uma musica que diz “somos um país subdesenvolvido”, canção que embalava os estudantes da UNE nos Centros Populares de Cultura. Ai me veio à cabeça como a idéia dos CPCs era algo revolucionário, imagina a cultura genuinamente brasileira sendo levada ao povo por artistas, estudantes e intelectuais.
Achei muito interessante como o Eduardo Coutinho conduz o filme, a forma que entrevista as pessoas. Não tenho muitos conhecimentos em documentários, mas achei esse um belo filme que me fez parar pra pensar na dura situação do povo brasileiro.

Caio F.


Falando de amor eu não poderia deixar de falar de Caio Fernando Abreu, já que nesse espaço, pretendo compartilhar algumas de minhas idéias e coisas que trazem paz para meu espírito. A obra desse extraordinário autor entrou em minha vida através de uma peça encenada em Juiz de Fora há uns 5 anos atrás, era uma montagem de Pela Noite, conto que depois fui ler no livro Triangulo da Águas. Fui procurar saber quem era ele aquele cara que falava do amor e solidão em nosso tempos, acabei me deparando com uma escrita que tocou fundo meu coração. Sua compreensão sangrada de tudo, como ele mesmo diz de Clarice Lispector, acabou mudando minha vida. Um consolo no meio do caos urbano, entre o cheiro de fumaça e gasolina, a energia das luzes das noites das grandes cidades, a solidão, Caio transforma tudo em beleza na forma voraz de falar de nossa época. Assim como foi com Frida Khalo, a emoção de ter conhecido sua obra se tornou ainda mais intensa depois que me deparei com sua vida. Testemunhos que ele vomitava em suas crônicas diárias no Estado de S. Paulo. A lucidez com que falava de sua condição de soropositivo, internado em um hospital com os braços furados por agulhas, me fez chorar por várias vezes. Às vezes quando fico deprimido, aquela depressão clichê de revolta com o mundo, os contos de Caio me consolam, sempre me salvando. Por isso gostaria de compartilhar com vocês pelo menos um pouco de Caio F.


Bibliografia:
Limite branco
Inventário do ir-remediável
O ovo apunhalado
Pedras de Calcutá
Morangos mofados
Triângulo das Águas
Os dragões não conhecem o paraísoAs frangas
Onde andará Dulce Veiga?: um romance B
Ovelhas Negras
Estranhos estrangeiros
Pequenas epifaniasT
eatro completo. Girassóis
Fragmentos: 8 histórias e um conto inédito
Cartas





NA TERRA DO CORAÇÃO

Nave, ninho, poço, mata, luz, abismo, plástico, metal, espinho, gota, pedra, lata.
Passei o dia pensando — coração meu, meu coração. Pensei e pensei tanto que deixou de significar uma forma, um órgão, uma coisa. Ficou só som-cor, ação — repetido, invertido — ação, cor — sem sentido — couro, ação e não. Quis vê-lo, escapava. Batia e rebatia, escondido no peito. Então fechei os olhos, viajei. E como quem gira um caleidoscópio, vi:
Meu coração é um sapo rajado, viscoso e cansado, à espera do beijo prometido capaz de transformá-lo em príncipe.
Meu coração é um álbum de retratos tão antigos que suas faces mal se adivinham. Roídas de traça, amareladas de tempo, faces desfeitas, imóveis, cristalizadas em poses rígidas para o fotógrafo invisível. Este apertava os olhos quando sorria. Aquela tinha um jeito peculiar de inclinar a cabeça. Eu viro as folhas, o pó resta nos dedos, o vento sopra.
Meu coração é o mendigo mais faminto da rua mais miserável.
Meu coração é um ideograma desenhado a tinta lavável em papel de seda onde caiu uma gota d’água. Olhado assim, de cima, pode ser Wu Wang, a Inocência. Mas tão manchado que talvez seja Ming 1, o Obscurecimento da Luz. Ou qualquer um, ou qualquer outro: indecifrável.
Meu coração não tem forma, apenas som. Um noturno de Chopin (será o número 3?) em que um Morrison colocou uma letra falando em morte, desejo e desamparo, gravado por uma banda punk. Couro negro, prego e piano.
Meu coração é um bordel gótico em cujos quartos prostituem-se ninfetas decaídas, cafetões sensuais, deusas lésbicas, anões tarados, michês baratos, centauros gays e virgens loucas de todos os sexos.
Meu coração é um traço seco. Vertical, pós-moderno, coloridíssimo de neon, gravado em fundo preto. Puro artifício, definitivo.
Meu coração é um entardecer deverão, numa cidadezinha à beira-mar. A brisa sopra, saiu a primeira estrela. Há moças nas janelas, rapazes pela praça, tules violeta sobre os montes onde o sol se pôs.Alua cheia brotou do mar. Os apaixonados suspiram. E se apaixonam ainda mais.
Meu coração é um anjo de pedra com a asa quebrada.
Meu coração é um bar de uma única mesa, debruçado sobre a qual um único bêbado bebe um único copo de bourbon, contemplado por um único garçom. Ao fundo, Tom Waits geme um único verso arranhado. Rouco, louco.
Meu coração é um sorvete colorido de todas as cores, é saboroso de todos os sabores. Quem dele provar, será feliz para sempre.
Meu coração é uma sala inglesa com paredes cobertas por papel de florzinhas miúdas. Lareira acesa, poltronas fundas, macias, quadros com gramados verdes e casas pacíficas cobertas de hera. Sobre a renda branca da toalha de mesa, o chá repousa em porcelana da China. No livro aberto ao lado, alguém sublinhou um verso de Sylvia Plath: “I’m too purê for you or anyone”. Não há ninguém nessa sala de janelas fechadas.
Meu coração é um filme noir projetado num cinema de quinta categoria. A platéia joga pipoca na tela e vaia a história cheia de clichês.
Meu coração é um deserto nuclear varrido por ventos radiativos.
Meu coração é um cálice de cristal puríssimo transbordante de licor de strega. Flambado, dourado. Pode-se ter visões, anunciações, pressentimentos,ver rostos e paisagens dançando nessa chama azul de ouro.
Meu coração é o laboratório de um cientista louco varrido, criando sem parar Frankensteins monstruosos que sempre acabam por destruir tudo.
Meu coração é uma planta carnívora morta de fome.
Meu coração é uma velha carpideira portuguesa, coberta de preto, cantando um fado lento e cheia de gemidos — ai de mim! ai, ai de mim!
Meu coração é um poço de mel, no centro de um jardim encantado, alimentando beija-flores que, depois de prová-lo, transformam-se magicamente em cavalos brancos alados que voam para longe, em direção à estrela Vega. Levam junto quem me ama, me levam junto também.
Faquir involuntário, cascata de champanha, púrpura rosa do Cairo, sapato de sola furada, verso de Mário Quintana, vitrina vazia, navalha afiada, figo maduro, papel crepom, cão uivando pra lua, ruína, simulacro, varinha de incenso. Acesa, aceso — vasto, vivo: meu coração teu.
O Estado de S. Paulo, 10/2/1988



sexta-feira, 24 de agosto de 2007

A viadagem encampando a pobrefobia



Essa reportagem foi publicada na ultima Revista Caros Amigos e foi motivo de uma grande polêmica, com aclamados protestos de alguns e aplausos de outros. Eu achei linda, pois trata de um preconceito que causa um mal estar muito grande no meio gay. Padrões de beleza que oprimem os que não se enquadram, um hedonismo desenfreado que os gays usam para enfrentar os preconceitos, consumindo demais para serem mais consumíveis e digeríveis para a sociedade. Todas as discussões contra as idéias do texto é a de que ele estaria sendo preconceituoso ao chamar a Parada do Orgulho Gay de um evento nazista e segregacionista, acho que alguns gays acabam tendo idéias e visões de mundo que chegam a ser fascistas mesmo, as questões levantadas pelo texto deveriam ser mais discutidas pelo movimento gay. Juntar mais de 2 milhões de pessoas nas ruas da maior cidade da América Latina para celebrar a supremacia de Eros no meio da Av. Paulista e algo digno de louvação, e amar é a razão pela qual todos nós devemos lutar. Claro que se deve lutar pelo direito de amar, mas é importante também amar as pessoas que vivem ao nosso redor e que também lutam pela mesma forma de amar. Por isso para ilustrar essa bela matéria coloco a imagem de São Sebastião todo flechado, que suspira de amor.





A VIADAGEM ENCAMPANDO A POBREFOBIA
por Paulo Nascimento

“‘Os gays malham a semana inteira, juntam dinheiro para vir à balada e idealizam esse dia como se fosse o último da vida deles’, diz o produtor Beto Matte, 35, por volta das 5 h. De acordo com Matte, ninguém quer realmente nada com ninguém, apenas exibir o corpo esculpido, caçar quem tem droga e, aí sim, beijar vários.”
(“Parada Gay aquece mercado de luxo”,Daniel Bergamasco, Folha de S. Paulo, caderno Cotidiano, 10 de junho de 2007)
“‘Só uso tênis Puma, tenho sete pares’, contabiliza o publicitário Thiago Guez, 23, 1,95 m, 95 kg. São 3h25 quando ele entra na boate vestindo um casaco debruado de pele ‘comprado em Paris’, jeans Diesel e uma camisa Zara. Usa perfume Jean Paul Gaultier, mas seu preferido é o 212, de Carolina Herrera.”“O engenheiro Augusto, 35, acredita que ‘os gays não gostam de bichas’. ‘Eles ficam com vários aqui na boate porque está tudo escuro, o som é muito alto e não é preciso ouvir a voz (fina) de ninguém. No dia-a-dia, sem nada na cabeça, a música é outra.’”
(“Teste comparativo avalia pagode lésbico e frenesi gay”,Paulo Sampaio, Folha de S. Paulo, caderno Cotidiano, 10 de junho de 2007)“‘Nunca vi tanta gente feia!’, diz o estudante bombado, descamisado e depilado Victor Prado, 19, saindo da Parada Gay. A frase foi ouvida muitas vezes pela reportagem, em diferentes grupos do evento. A maioria dos queixosos é representante da ala masculina. De acordo com os correligionários de Prado, desde a primeira edição, onze anos atrás, a Parada do Orgulho GLTB se popularizou demais e ‘hoje é freqüentada por pessoas que nem são gays’ (...) ‘Isso aqui está irreconhecível, olha só quanto mano’, aponta para um grupo de jovens de bermudão e skates o administrador Ricardo Sá, 29. Apesar de manter o fundamento militante, o movimento agora recebe a adesão de pessoas que, para Sá e os cinco amigos que o acompanham, o descaracterizaram. ‘Acontece que isso aqui é um evento aberto, não precisa pagar nada. Então, não dá para controlar a freqüência’, diz o professor Emanuel Via. O preconceito parece contagioso. Esquecido da essência suprapartidária da parada, o fotógrafo carioca Mauro Scur, 32, diz: ‘Como vocês dizem aqui em SP, só tem periferia. Lá no Rio, a gente diria suburbano’.”(Paulo Sampaio, “‘Nunca vi tanta gente feia’, dizem habitués”, Folha de S. Paulo, caderno Cotidiano, 11 de junho de 2007)
São muitos os ensaios que trataram de analisar a formação da civilização brasileira e que se consagraram na história do pensamento nacional por sua excelência ao tratarem das peculiaridades que caracterizam o povo brasileiro. De Sérgio Buarque a Roberto DaMatta, de Euclides da Cunha a Antônio Cândido, de Caio Prado a Alfredo Bosi, nenhum passa batido pela questão da heterogeneidade presente em nossa formação. De tudo: das relações humanas, da estrutura social, familiar, dos ritos, da visão de mundo. Estamos no país em que o católico conversa com pai-de-santo, o milico transmite informação para o preso político, a mulher que criminaliza o aborto é a mesma que já passou por uma fazedora de anjos, o diretor de campanha do PSDB vota no Lula, e por aí vai. Só mesmo num país cuja desigualdade social é atroz e reverbera para todos os lados essas escancaradas contradições podem ser mantidas; pior, não raro atingem dimensões catastróficas (o nepotismo, o comercial de cerveja no canal do bispo, o banco público que tem lucro gordo que não volta para o público...) e são minimizadas, passam quase que despercebidas, para serem, enfim, aceitas.
Eu me pergunto: como um evento que, a princípio, tem como razão de ser a defesa da abolição da desigualdade jurídica, do preconceito social, da violência civil dos quais é vítima categórica um nicho social tradicionalmente depreciado na história de nosso país é capaz de atrair gente que vê problema em estar ao lado de alguém que, ou por escolha ou por uma simples questão de impossibilidade (a segunda é, claro, pior, mas até aí, dane-se), não se aparamenta com roupas, calçados, acessórios e artefatos que aumentam cada vez mais os lucros dos donos de butique? Pois aqui do lado de baixo do equador, vítima de preconceito é o primeiro a externar os seus, assim, dessa forma assaz inconseqüente como se lê na epígrafe de excertos do jornal. Como se hierarquizar pessoas, sentimentos e valores a partir de um viés estritamente consumista, com julgamentos precipitados, fosse “natural”. Isso ocorre simplesmente porque a balela de “guerra ao preconceito” não passa disso: balela. A Parada Gay de São Paulo é um evento nazista, segregacionista e vulgar, cria de uma sociedade consumista fetichista e mesquinha. Basta ir lá e conferir: homens infantilizados, sem a menor percepção do ridículo que é ser um moleque de 50 anos, um drogado escapista ou ficar desfilando com o sexo pra fora, para retificar sua existência estúpida e sua massa muscular exagerada, inversamente proporcional à sua massa encefálica.
E é essa força da grana que ergue coisas podres aqui. Não faço idéia de como isso possa ter surgido, se é um movimento localizado ou, segundo a lógica do historiador francês Braudel, uma manifestação da longa duração; se esse traço pode ser percebido em outros contextos, configurado segundo dadas peculiaridades, não sei. O que sei é que agora o falacioso anátema está aí: viado puro-sangue é aquele com dinheiro no bolso. Conseguiram convencer os ignorantes de que, para que eles possam vislumbrar alguma dignidade, eles precisam corresponder a um estereótipo. Qual a razão do desconforto em negar o estereótipo da bicha-lôca, efeminada, frágil, alcoviteira e invejosa, sendo que o estereótipo do bombado, usuário de grife e disposto a gastar dinheiro da forma mais inconseqüente possível não só é aceito como defendido e propagado? Estereótipo não é tudo a mesma coisa, não sou todos limitantes? Por que negar um e, no mesmo fluxo, legitimar o outro? Além de, no fundo, no fundo partirem da mesma perspectiva homofóbica que vocifera ser o homossexual um torto, um excremento localizado no corpo que precisa ser execrado de alguma forma (na medicina, na psicologia ou na sessão do descarrego da Igreja Universal), colocam como ponto de encontro para sim mesmos a luxúria, a competitividade, o tosco. Ou seja, no fundo acreditam que homossexualidade tem tudo a ver com exagero, excesso, extravagância. Homossexualidade é ter atração sexual pelo ser do mesmo gênero que o seu, só isso. O resto é desespero de pessoas que, como bem definiu Cazuza, "tão no mundo e perderam a viagem"
E claro, como não poderia contrariamente se, há os "militontos", pseudo-revolucionários que se pretendem militantes políticos, e se esforçam em convencer sabe lá quem de que a Parada Gay é uma manifestação de cunho político. Uma ova! Essa Parada esdrúxula nada mais é que um ponto de encontro de perdidos, um carnaval-fora-de-época dos que se sentem aliviados na multidão, porque não têm a menor noção do que fazer com suas individualidades. Orgulho gay ao meu ver não tem nada a ver com escândalo. É você ir jogar bola com uns camaradas, participar de um grupo de estudos, fazer uma macarronada pra uma moça supinpa, cumprimentar o gari, pagar o imposto de renda, xingar o cara que te fecha no trânsito, ouvir Beatles, viver, afinal de contas, reagindo de acordo com as circunstâncias, sem que a sexualidade (nem a sua nem dos outros) seja mote de deferência.
Sou bastante favorável à diversidade, aquela de Gilberto Freyre, que repara na mistura da formação de nosso povo e enxerga possibilidades otimistas dessa mistura ser exercitada no cotidiano de nossa gente. Sei que não tenho nada a ver com a vida dos outros, que minhas impressões pouco importam para a história do pensamento humano, que cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é. Eu também sei que não há nada mais emancipador do que ser tranqüilo diante de sua condição, seja em qual esfera for (social, cultural, política estética...). É um barato educar a sensibilidade de seu corpo e de seu espírito para perceber as belezas sutis da vida. E é por isso que prefiro ir ver o vôlei do Bernardinho lá no Ibira. O jogo é bonito, a seleção é um timaço, e faz mais meu estilo ver gente animada vendendo saúde num ginásio que gente doente vendendo melancolia no meio da rua, entregue à sorte na liquidez moderna.



PAULO NASCIMENTO, 21, é viado, assim como é alto, negro, de cabelos crespos, dedos finos e olhos castanhos. É bem resolvido com todas essas características supracitadas que tem, mas gosta mesmo é de ser lembrado por sua vontade de viver, sua perspicácia, a dedicação que investe nos estudos e sua habilidade como mestre-cuca de república estudantil. Escreveu este texto como simples exercício de desabafo, pois sabe que não vai mudar o mundo - mas tem ciência que ser crítico em relação ao mesmo é sempre melhor.

Onde estará germinando a semente estética plantada?



A idéia de nacionalismo no Brasil ficou ainda mais de lado depois da morte de Glauber Rocha, grande defensor de nossas raízes culturais, que lutava pela valorização de nossa identidade terceiromundista.Com o crescimento da televisão e da rede de tv imperialista Rede Globo, as telenovelas acabam legitimando o padrão roliudiano, a beleza americana é transferida para a ensolarada zona sul carioca ao som de bossa nova. O american way of life é o sonho da dona de casa que assiste a um filme na sessão da tarde. As discussões acerca de nossa colonização cultural ficaram de lado, nosso povo terceiromundista aprendeu a olhar o mundo com os olhos de Roliude.
O cinema voltou a ser o que era na sua origem, uma atração de circo.
As pessoas penetram no escuro da sala de exibição e durante algumas horas permitem que toda a estética imperialista entre em suas vidas. As casas americanas com jardim na frente e cercas brancas, os homens e mulheres, ricos e lindos, dão lugar no imaginário coletivo aos casebres e palafitas que permeiam nossa realidade. As pessoas se alienam e sonham com uma realidade distante. Claro que o sonho é o único direito que não se pode proibir, esse é o papel da arte, mas é importante que esse sonho seja um sonho voltado para nossa realidade.
Como dizia Roland Barthes, a sétima arte exerce um poder hipnótico, as imagens que ficam na memória da massa, ilustram, iluminam, vestem e embalam nossas vidas.
O papel do cinema como de toda forma de arte é fazer com que fiquemos mais lúcidos diante do mundo.
Hoje nos deparamos, com um mercado cinematográfico totalmente americanizado, dominado por distribuidores e exibidores imperialistas.
Os cinemas multiplex que se estendem país afora, privilegiam a exibição dos blockbusters americanos.
Apesar de tudo, sempre existirá quem esteja disposto a “insultar os arrogantes e poderosos, quando ficam como cachorros dentro dágua no escuro do cinema" como disse Joaquim Pedro de Andrade.
Todo o discurso de Glauber Rocha e do movimento do Cinema Novo está em cada artista que faça uma arte que nos faça olhar para nós mesmos, para nossa realidade marcada pela tragédia da fome. Onde estiver um cineasta disposto a fazer um cinema preocupado com seu tempo, um cinema comprometido com a verdade ali estará um germe do cinema novo.
O cinema do futuro subverte todas as ordens, um cinema para se sentir e não para se compreender, exemplo de A idade da Terra a obra mais polêmica de Glauber Rocha, filme que rompe com o cinema narrativo e com a estética cinematográfica tradicional. Incompreendido, Glauber levou sua trip até as ultimas conseqüências nesse lindo espetáculo audiovisual, mural que mostra nosso terceiro mundo em uma explosão de gritos, poesia, cores, luzes e sons.